quarta-feira, 28 de novembro de 2007



Vocacao: ir embora.
Pintei mapas nas solas dos pes
E fiz da ponta da lingua
O meu compasso.
E do batuque do trem
Meu marcapasso.
Andarilha, soh sei andar.
Bom filho aa casa torna. Ja eu
Nasci pra errar.


quarta-feira, 14 de novembro de 2007



A vida tem quinas.
Cada dia que se dobra em noite—
Uma esquina.
A vida eh dura, diamantina.
Ela aos poucos
Me assassina.


sexta-feira, 9 de novembro de 2007



Que alivio um dia,
Suar pura
Poesia.
Por de vez
Tudo pra fora.
Acordar
Simples e vazia,
Uma cuia de pedra fria
Abracando um vao.


Hilda.



Herdei te ti
um gume fino e amargo.

Fincado
no torax
um feixe de desejos.

Reles
latejantes
relampejos.

Cada gota de vinho
um leito.

terça-feira, 6 de novembro de 2007



A poesia, dormente
Jaz latente
Subcutanea
Aguardando
Sabe-se-la-o-que.

sexta-feira, 14 de setembro de 2007

No aniversario do Descobrimento



Coroam este ceu de noite
Outrora tao sereno

Cinquenta margaridas de polvora.
Ai esquecimento, ai limpido veneno--

Quanta flor plantada
Em tumba errada.



1997

Descaminho



Repare bem, que esta
E a ultima parada deste trem.
Aqui travam-se as rodas;
Dissipa-se a fumaca num gordo suspiro,
E cessa o canto sofrego da maquinaria.
A fornalha exhausta cospe uma faisca,
Se apaga, e
Se enfria.

Note bem:
Nao ha mais passageiros neste trem.
No forro dos bancos reluz
O inchaco mudo do abandono.
Apagaram-se os dedos nervosos
Do padeiro atrasado; a sandalia do menino
Que prendeu o dedo na janela; as pregas da
Saia da menina assanhada.

Mais alem, trilhos virgens furam a noite.
Mas este trem fica por aqui,
Travado no nunca,
Em meio-caminho.

A primeira gravura



Colher a figura
Com docura.
Nem sempre o cobre
Pede violencia. Mas
Quando esta chega,
Ja na primeira gravura,
Ha que saber colhe-la com os olhos,
Doma-la com a mao.
E guardar a faisca
No chao da boca.
Engolir seco, e talhar
A chapa com gana e
Fingida ternura.



1997

Onca



Voce so me rastreja
Porque conhece o proprio corpo,
Mas nao sera sempre assim.
Um dia tudo isso, cabeca, coracao e vento

Lhe parecerao impedimento, e perderas
A docura violenta que te guia. Mesmo
A pele esguia te pesara sobre os ombros --

Capa chumbada como o ar que se parte,
Endurecido. A tua danca ja nao correspondera
Ao teu desejo minucioso --

Ficaras pra sempre vizinho da perfeicao,
Perto o bastante para doer sem sangrar.
E o tempo -- rato, anjo, serafim --
Te roendo ate o fim.



1997

Antes da extincao das freiras



Pouco antes da extincao das freiras
Havera grande comocao nos conventos do pais.
Janeloes ha muito travados reabrirao,
E feixes de velhinas secas e pasteurizadas
Chorarao um lamento unissono, gutural.

Havera tambem ameacas, uns e outros
Bradando Cristos talhados feito finas adagas,
Rogando pragas em nome de Deus. Algum
Politico sensibilizado acionara a maquina publicitaria. Choverao

Panfeltos, intimidacoes. Nos chas da meia-tarde,
Madrinhas perfumadas evitarao o assunto, constrangidas.
Enquanto isso as mocas da cidade, vestidas de vermelho,
Pitarao alegres seus cigarrinhos mentolados.
Quando baixarem da colina o ultimo caixao,

Havera cinco exatos minutos de silencio.
Todos se benzerao, e entao recomecara
O baile suado das grandes cidades, onde vez ou outra
Alguem suspirara por um passado enterrado
Nalgum outro esquecimento.



1997

A prosa-poema



A prosa-poema e o maior dilema
Da literatura contemporanea.
Ninguem conseque solucionar o tal problema.
Intelectuais e beletristas se abatem
Para alcancar uma definicao.
Chovem saraivadas de tiros
No Pequeno Trianon.
Vez ou outra despenca da varanda
Algum fardado Imortal.
Comparecem todos ao Funeral.
Laureiam entao o ilustre sucessor
E retornam suando ao terrivel tema
Desta tal prosa-poema.



1997

Museu



Todo o feitio da foice, da chuva, da bota.
As costuras do teu rosto,
Essa boca que se desfia,
Duas maos empedradas sangrando argila
E essas temporas toscas e muradas--

Tudo isso me lembra mundos
Que nunca vivi.

Mas as vezes eu acho
Que o fim das coisas
E onde elas realmente comecam.
A sola da bota.

Onde voce tombou, misterio, eu nasci:
Ali todo intervalo se contrai,
Porque o teu rosto --
Retrato, relato, museu --
Escorre no tempo
Desagua no meu.



1997

Fui




La de onde eu vim
O tempo faz hoje de mim
Forasteira.

segunda-feira, 20 de agosto de 2007



As distancias, dilatadas
Medem-se assim, esvaziadas.
Voce
Cada vez mais perto do que procura
E cada dia
Tao mais longe de si mesma.

quarta-feira, 15 de agosto de 2007



As silabas vao acumulando no canto da boca,
Peixes na rede,

Fugidias e escorregadicas, vez ou outra

Retorcendo-se em palavras. Assim acorda a
America do Sul.

Ditadores brotam e medram pelo continente, Eta
Estirpe impertinente.

Ha que estar atento.
Carrascos espalham-se ao vento.

Eles calcarao botas de verniz, ternos riscados a giz.

Sempre havera outro momento.

sexta-feira, 10 de agosto de 2007



Vivendo entre livros
Sabe-se o valor de uma estante
Que arca sob o peso de tantas estorias
E nao cede.

E aas vezes eu acho que
Todo detalhe do mundo
Enada mais que analogia
Pralguma outra coisa.

terça-feira, 3 de julho de 2007



Julho atropelou junho e me achou na Africa.
Um ar seco sibila
Serpentino narinas adentro
e estala nos pulmoes.
Tudo isso me lembra, quem diria,
A caatinga de Goias.
Sois desimpecilhados queimando
Planaltos altos e suas plantas asperas.
Mas aqui sou mulher branca
Como nunca se foi no Distrito Federal.
E como me olham os que me passam.
Tem coisas que eu devo carregar com os olhos
Que nem sei bem o que elas sao.

No fundo no fundo no fundo no fundo no fundo no fundo no fundo no fundo no fundo
(Quero dizer mas engasgo)
Sou azul de tao preta que eu sou.

quinta-feira, 28 de junho de 2007

Nao me perguntem



Nao sei bem de onde venho
Muito menos
Pra onde vou.

Nem sei bem quem andei sendo
Muito menos
Quem hoje sou.

E isso (estranhamente)
Me basta.



Um vento me deitou
Uma flor amarga na lingua
E me chamou ofegante, Vem
Que eu vou te mostrar
A musica que emana desta terra.

Eu encostei o ouvido no chao
Ouvi o burbulho de riachos
O ranger de engenhocas
A valsa lenta dos continentes
O cavucar dos bezouros
O espichar das raizes
Cada pedra de moenda
Ossos e ossos estalando.

Por baixo disso tudo eu ouvi
Um silencio descabido
Um vazio descomunal
Que eu nao sei se era
Um reconforto ou terror.

quinta-feira, 14 de junho de 2007



Faz muito tempo que acordamos longe da nossa terra.

Em sonhos e delirios vemos a palha dos tetos das casas que foram nossas

Desaparecer por tras de montes que tinham nomes na nossa lingua.

E os cumes daqueles montes somem por tras de outros montes

Com nomes que a nossa lingua desconhecia.

Entre nos e a nossa terra ha tambem planicies aridas e vermelhas

Onde secaram as nossas bocas e os olhos de nossos filhos.

E raizes de arbustos com nomes que escorrem por nossas frontes e

Nos agarram pelos pes e nos fincam neste solo estranho.

E as solas dos nossos pes que nos trouxeram ate aqui

Elas ja nao lembram mais o caminho de volta.

quarta-feira, 13 de junho de 2007



Viver até
Ser fraca e velha
Requer
Uma força

descomunal

segunda-feira, 28 de maio de 2007

Viajar é preciso.



Viajar é preciso.
Para isso foram feitas as solas dos pés:
Para percorrer vastas distâncias desconhecidas.
E tendo-as percorrido, estes nossos bravos
Revestimentos, calejados, podem então
Voltar pra casa afinal apazigüados.

E para viajar também foram feitos os olhos:
Para vasculhar amplos horizontes alheios.
Tendo-os minado, estes nossos duplos
Mirantes, deslumbrados, afinal
Regressam prontos para o sono verdadeiro.
Mas para isso, é preciso viajar.

E é por isso também que
Há que se lançar o coração bem longe
Feito rede de pesca, guardando na mão cerrada
Apenas um punhado. Largar o resto
À deriva. Ele talvez se arrebente,
Ou talvez algo se emaranhe nele.
Enfim. Para que volte quem sabe
Um pouco mais sábio.

Um coração viajante não é indeciso.
Viajar
é preciso.

quinta-feira, 24 de maio de 2007

Cartícula



Caros amigos,

Vou para a África e não sei quando volto.

(Uma vida sem fio nem meada.)

Mas a porta e a aldrava permanecem. De vez em quando acrescentarei alguma coisa neste canto. E visitarei também os seus.

Bjs

LS

Aproximação noturna da África



Tulipa incandescente,
A tua luz sibilante
Me roça a derme.
E desperta em mim
Séculos de paixões intercaladas
Com estranhas dormências. E
Minhas extremidades começam
A formigar.

E um linho branco e transparente
Estende-se sobre o continente.
Por debaixo, coisas aflitas se debatem.
Suspiros de papiros.
Solfejos de percevejos e por toda parte,
Trovoadas e lampejos.

Meu ventre vive inchado
De água feito um baobab.
Por não saber abraçar o deserto
Eu arranho o céu.

Você me fincou raízes por entre costelas
E abriu no meu tórax uma boca
De janela.

E por entre os seus dentes
O que eu enxergo é
A África.

sexta-feira, 18 de maio de 2007

Aos desaparecidos



Mãe me arrancaram do teu ventre
E do teu colo meu sumido pai.
E restou de vocês só
Água na pedra.

E é por isso que tenho olhos de pixe
E esta boca de alçapão.
E minha sombra, esse escuro tão escuro
Que chega a ser escuro
De porão.

quinta-feira, 17 de maio de 2007

O mar ausente



Sou toda mar, Maria sou
Cintilâncias latejantes
Orlas de ferrugem e marés vermelhas
Vomitando ondas nas pedras,
Altas incertezas como cordilheiras de água
Onde você fincou bandeiras.

E quando um oceano furioso
Engolir em sêco e se arrastar pra longe
É naquele vão prenhe e silencioso
Na areia espelhada Maria
Que eu vou me sentar.

terça-feira, 15 de maio de 2007



(inacabado - mais que os outros)


Vou até a beira do rio lavar a minha alma:
Sabão de côco e água fria.
Vou esfregar nas pedras polidas
Até esfolar as juntas
E depois estendê-la sobre as pedras
Deixar secar ao sol
Como uma camisola limpa
Como uma bandeira alva
Como uma folha em branco
Como um sudário macio

segunda-feira, 14 de maio de 2007



Para Susana


Publicar um poema
É soltar uma alcatéia de lobos
Por campos roliços. Você

Desenterra guerreiros de terracota
Do chão branco de uma página,
Alça romances de vãos ocultos.

A cada escolha, Susana,
Você tenta tempestades do outro lado
De outras luas. Dá-nos poemas,

Editrix, para que o caos do mundo
Brote nas nossas rachaduras,
Medre pelas

Falésias que nos preenchem,
Passe e repasse por entre
Estes nossos duros dentes.

sexta-feira, 11 de maio de 2007



Disso fomos feitos: dum
Bailarino pólen.

Nanocoisas num megauniverso.
Pó de estrêla,
Restos de convulsões galáticas.

Átomos
Prótons
Quarks
Pensamentos subdivididos até a abstração.

Pontos

sem dimensão.

Cada um seu
Ponto-e-vírgula, um
Nódulo matemático.

E pra isso vivemos: em busca de redes.
Espichando-se em linhas.

Disso nascemos: Do lampejo efêmero
No branco do olhos
D’algum deus distraído.

quarta-feira, 9 de maio de 2007



para Nan


Há algo em mim
pequeno e quebradiço
e inconsolável

o antônimo do mar



Percorrer a orla enferrujada
Cais largados por
Navios desintegrados

Atravessando cegamente
Cemitérios de Indústria
Com seus túmulos de chaminés
E trilhos abandonados

Com um que não me quer mais
Mesmo assim
Dias assim me parecem
Tortura passageira demais.

terça-feira, 8 de maio de 2007



Ao me espreguiçar as solas dos meus pés roçam uma supernova em plena implosão.
Eu me reviro na cama, as solas ardendo.
Depois a vejo de novo em sonho,
Íris fulminante pulsando roxa num breu gelado.
Encolhida em si.
Um núcleo tão miúdo e denso que uma colherinha apenas
Pesaria milhões de toneladas.
Eu na minha cama.

domingo, 6 de maio de 2007



Sou quase eu.
Um dia eu ainda
Me preencho. Ah
E como seria apaixonante
Ir um bocadinho além da conta.



O meu amor é insolúvel.
Em copo d’água ele afunda.
Falta, acho, efervescência.
E depois ainda fica esse gosto
meio metálico na boca.
Uma cintilância ardida na língua,
Alfinetadas no paladar.
Como diria o farmacêutico
Nada desprazeroso
Porém tampouco
Muito fácil de se tragar.




Montanhas como
Casulos de pedra como
Vultos de cócoras
Sentinelas agachados
Aguardando sob
A superfície da terra
Prestes a arrebentar o
Gentil manto
A rasgar o encanto
Da calmaria
A qualquer sinal
Aguardando e
Quando a terra urra
Todo o mundo
Assistindo televisão
Acha que é aeronave
Cumprindo a sina
E que as montanhas dormem
Que elas têm sonhado
Desde o começo do mundo

sábado, 5 de maio de 2007



Dá-me uma baía esvaziada de mar.
Uma cratera exaurida, um cânion abandonado
Pelo rio que talhou o deserto
(Lâmina líquida que fugiu pra não voltar.)
Dá-me um vale, uma vala, uma vázea largada.
Qualquer coisa vasta e dum escuro profundo
Pra conter esse amor
Que não sei mais onde enfiar.

quinta-feira, 3 de maio de 2007



Amaríssimas
As feições do homem
Que pinta o teto da capela.
Respinga do alto
Rubro de cádmio, azul de cobalto,
E o rosto do homem torna-se
Em si uma paleta.

Pigmentos sangram flores no gesso molhado.

Mundos se deslocam sob os andaimes.

Rangem os esteios, estalam as amarras
E quantos contos outrora doces
Agora se debatem na tinta e na água.
Plangentes e persistentes.

Sobre o altar,
Feixes e tendões, máquinas de músculos,
Bocas e bocas urrando silêncios.
Um emaranhado de corpos retorcidos
Num terror extasiado.
Um juízo final levantado da têmpera.

Uma gotícula de suor escorre
Pela fronte, o filete
Faz arder um olho entrecerrado.

Faz-se um deus de zarcão e alcaiade.

Mas que outro deus é esse
Aguardando no peitoril?

Em era de guerra
Mesmo em capela
Pinta-se guerra.


NY, maio de 2007

quarta-feira, 2 de maio de 2007



O dia atravessa as persianas
E invade o quarto: um pente de lâminas.


NY, maio de 2007

terça-feira, 1 de maio de 2007



Medrar por entre verdes
Saias, serpentinas samambaias.
Sombras densas pisando sombras leves.
Um monte de coisas frondosas
E fulgurosas, copas de árvore,
Carpetes de musgo, coisas que se
Agarram e se entreabraçam.
Um denteio de laca num espichar de
Pescoço. Eis tudo o que eu quero.
Um embrulho de folhas, redes de eras,
Dedos de endro adentrando pela boca.
Eis tudo o que eu quero,
Ninho húmido em terra fofa.


NY, maio de 2007

domingo, 29 de abril de 2007



Tem dias que a poesia me pára e me preenche.
Tem horas que ela me vara e me esvazia.
Uma maré medonha.
Um acorde de bandolim.
A lua se aproximando e se distanciando,
Inchando e desinchando
O humor dos meus olhos,
Todo o conteúdo das minhas células.
Eu te digo: Tudo dentro de mim eu ponho a serviço
Da palavra, e mesmo assim nunca sei dizer
Quando ela me quer bem.
Ora cataplasma, ora ferida, ora gume de aço,
Ora mão tosca que empunha a espada,
Ora mão fina que me deita o curativo,
Ora a dor em si: palavra despida de sons.
Como e quando dizer, aqui termino eu e
Começa ela? Se já nem sei bem
A quem pertencem nossos nomes.


NY, abril de 2007

quinta-feira, 26 de abril de 2007



Você costumava dizer:
O mundo tem quinas
Arredondadas.
Eu vivo de joelhos esfolados
E a alma em carne viva.
Mole feito compota
E a vida é que nem o mundo,
Dura e angular.
Eis a nossa primordial
Incompatibilidade.


NY, abril 2007

terça-feira, 24 de abril de 2007



Folheando o Livro
Das Infinitas Coisas Que Não Me Acontecerão
Eu estudo tabelas, gráficos halucinantes
Das trajetórias que não seguirei, de veredas que
Não ousarei seguir, de trilhas e autoestradas que
Não terei tempo de seguir ou que não me serão
Permitidas (em hipótese alguma).
Está tudo bem mapeado,
Minuciosamente pesquisado.
Eles realmente se empenharam. Tamanha geniosidade!
Assim que fechar o livro e repor na estante
Eu tenho que me lembrar de esquecer
Que por um instante soube
O que não há de me acontecer.


NY, abril de 2007

segunda-feira, 23 de abril de 2007

Miolo



Mas que miolo tenro
Tão tenro e lasso este tutano
Que ao menor contato com o mundo
Brota natas de púrpura e verde
Por baixo das armaduras de bezouro
Dos engonços das mileuma engenhocas
As amolecidas gemas mal se agüentam,
Se arrebentam
Quão fútil cada
Quebradiça carapaça
Tão tenro te fizeram este teu:
Coração a céu aberto.


Miami, abril de 2007

sexta-feira, 20 de abril de 2007

Amarrada à poltrona
No ventre da ave de cobre
Eu me faço lastro
De trajetórias alheias.
Eu me deixo lançar pelo espaço
Num arco semi-controlado.
Eu cedo cada gota de controle
Sobre cada átomo do meu ser.
Eu permito que façam de mim projétil,
Eu permito que façam de mim
Carga, arma, míssil seguidouro.
Eu sou aquela pedra
No estilingue que furou o olho de alguém.
Dizem que um deus vê tudo ao redor.
Ora eu vejo
Um deus desenfaixar as mãos calejadas
Segurar o pássaro pela barriga
E comandar: vai, por enquanto vai.

quarta-feira, 18 de abril de 2007

Réplicas (fiéis e infiéis)



Para Helena Istiraneopulos

O mundo é imenso
E esmagadoramente rápido.


Para Nelson Luiz de Oliveira


Futuramente
O presente nos parecerá
O passado revisitado
Feito mais eloqüente.
Eu aconteço ao mundo
Conforme o desejado
Ou é ele que me acontece
E assim me desmente?


Para Helena Istiraneopulos (II)

Meu encanto: mordes quinas.
Eis meu cocar: um botão-de-água.
Te sondo, xamã eu,
Com algum ungüento.
Me danças uma valsinha? Um minueto?
Minha Otília, me chegas
Empunhando facas, recitando crismas.
Pululam as tuas anáguas,
Ondulam nádegas e
Eu te ressinto no fígado.
Me desdentas assim e
Eu busco uma entrada-- uma valsinha de nada!—
Pra lamber a ferida.


Para Alessandra Espínola

Sou o inverso
Do teu verso.
És o reverso
Do meu universo.
Vide a bula:
Almas palíndromes.


Para Alessandra Espínola (II)

Sou o alvo.
Sou o ar que se aparta
Sou o sibilar da ponta
Sou o zumbido da seta
Sou a certeza da flecha
Sou a corda que estira
Sou a mão que repuxa
Sou o arco
A arqueira
Sou a mira.

Para Escobar Franelas

O passo que me traz a tarde
É o meu, e o mesmo afago:
Devolve, caro poeta
O meu olhar de favos
no engolir de pesadelos
Sou eu
Praquem o diabo, caro poeta,
Apenas basta.


Para Escobar Franelas (II)

filiação : etendam : fio d'aflição.


Para Alessandra Espínola (III)

Escondo tão bem ser um pouco triste
Escondo tão bem
No entanto, das minhas entranhas
(Quanto metal retorcido)
Brotam legendas, todas
De mapas alheios.



Para Luiz Guerra


No calor da chegada
Tudo se acomoda no apartamento novo—
Todas as xícaras,
Enfileiradas na estante, ecoam
O rebuliço das paredes.


Para Luiz Guerra (II)

Casamenteiras,
A todos podiam atar
Estas mães-países:
Juntar continentes, desmentir fronteiras,
Lacrar
Todo o seu vasto reino
Num só grão de arroz.


Para Elias Borges de Campos

Na testa da fera
Entre ponteiros certeiros
A menina espera.


Para Cristina Nunes

De dia, os cílios vivem separados
Cada um na sua, como que brigados.
Juntando-se apenas vez ou outra
Por centésimo de segundo
Para verificar que o colega
Ainda mora ali ao lado.
Quanto a noite cai,
Vence a camaradagem
De tantos anos de casamento.
Beijam-se as pálpebras
Entrelaçam-se os cílios:
Consuma-se a
Re-con-ciliação.

Poema de aniversário



Tem ausências que te escaldam
Feito baldes d’água quente.
Outras tantas se sentam ao teu lado
E te fitam silenciosas, aqueles
Gordos vazios mal-apaziguados,
Todos vácuos que se inflam,
Balões reconchudos no teto do
Saguão onde não estouram, vazios
Bem-marcados que te seguem
Pra casa, pra cama, que perfuram
A madrugada, ausências tão
Presentes que te mancham a vista,
Te desabrocham pelo dia
Num pulsar de veia cava.



(hic- bebi demais, amanha eu termino. LS)

sábado, 14 de abril de 2007

Estar só



Estar só já não me espanta—
A solidão hoje me é
Contígua.
(Um vaso e a sua sombra).

Companheira espelhada das horas magras,
Sempre muda, reflexiva.
Ouso dizer? Meio
Amiga.

O que temo, justamente, é:
Me acostumar de vez
Com essa tímida
Rapariga.


NY, abril de 2007

sexta-feira, 13 de abril de 2007

Música



Você tem as mãos leves,
A alma larga
E a poesia indócil.
E ao seu lado nada de nada
Resta incólume.

Azulejos rangem e racham
Sob os seus saltos.
No seu colo
Mesmo o mar
Esquece o próprio embalo,
Vira do avesso, suspira
Quebrado.

Você espalma as mãos
E vê que as linhas
Traçam pautas.
A música
É de uma doçura indescritível, e
Selvagem como qualquer mundo.


NY, abril de 2007

Cada poema uma folha



Cada poema uma folha
Dum caderno espiral--
A letra-chefe de cada linha
Uma volta de arame em caracol
Fio que me costura e me segura,
Metálica rotante inescapável
(Ufa! Coisa dura!)
Coluna
Vertebral.


NY, abril de 2007

segunda-feira, 9 de abril de 2007



Você acorda:
Delgada película
Que enluva a tua dor.
Dor que antes te enluvava,
Dor-de-nada,
Dor que deitava ao teu lado
Na hora da sesta
Travessa travada no gargalo tenro,
Dor que te vinha, te habitava
E que passava.
Hoje inquilina fixa,
Fumaça funesta
Que te perfura e te impregna
Cada célula do corpo.
Uma por uma,
Te oxidando – lentamente –
De dentro pra fora.


NY, abril de 2007

domingo, 8 de abril de 2007

A corda cede



A corda cede
Mais um cadinho.
Meio-metro de queda e
A barriga despenca junto.

V
u
u
u
m


A platéia urra! (se é que há platéia)
Sapatilhas dançam no ar
Um samba desengonçado
(o desespero sempre é).
E logo reencontram a corda.
O corpo reinventa algum
Risível centro de gravidade.

A desequilibrista retoma
O seu precário show
Sem rede nem barra
A mil metros de altura
Sobre o mar de concreto
Que é o chão do seu ser.


NY, abril de 2007

quinta-feira, 5 de abril de 2007

Hiato



No meio da semana você abre um parêntese,
Derrama tudo quanto te preenche, aí
Fecha o parêntese
E volta pro escritório.


NY, abril de 2007

quarta-feira, 4 de abril de 2007

Nem sol



Nem sol
Nem ilha
Nem farol:
Reles raio efêmero
Que liga por um triz sem-gênero
A tal ilha ao tal sol.
Portanto: da ilha-isca: mero anzol.

E talvez ainda: raio-órfã
De um sol-difunto
Esgotado desde a partida,
Sol-mãe onde
(Há mil anos-luz)
Raio, e reles raio ali
Nasci.


NY, abril de 2007

Povoam-te



Povoam-te,
Miúdas e caladas,
As roedoras dúvidas.
Trouxinhas de pólvora
Num crânio trepanado.
Os teus dedos formigando,
Antecipando a nódoa branca
Que de um estalo
Devora o breu.


NY, abril de 2007

domingo, 1 de abril de 2007

Onde eu moro



Entre sístole e diástole
Na piscadela dos olhos
Na apnéia do mar
Entre os dedos dos pés
No vazio entre os seios
No vácuo da rosca
No alento que antecede
O como-vai, o bom-dia
No umbigo do furacão
No vão da porta
Nos brancos das pautas
No papel entre as linhas
No nada-de-nada entre universos
Na pausa sincopada
Na cesura da sinfonia

Ali moro eu
Entre a noite e o dia.


NY, abril de 2007

Cifras escondidas



Pedra é matemática


Flor é matemática


Céu é matemática


Noite é matemática


Filho é matemática


Blog é matemática


Poesia é matemática


Dívida é matemática


Dúvida é matemática


Deus é matemática


(Por outro lado dizem que
Einstein foi péssimo namorado.)


NY, abril de 2007

quinta-feira, 29 de março de 2007

Abrigo

para M. Makeba


A voz erguida
sustém
um bemol liso e aberto
alça
sobre cada cabeça um teto
afixa
em cada corpo uma varanda
e ainda
põe nome na casa:
País

e quando a nota cessa
ela pousa leve
mente
mas

resta a
dor-fantasma
dum país

(país-fantasma)



NY, março de 2007

quarta-feira, 28 de março de 2007

Alhures



Colaborações recentes:

aqui,

aqui e

aqui.


E: as traduções continuam: Hilda Hilst e Paulo Leminski.


A fazenda



Da fazenda restou o sítio,
O campo talhado rente à sede
Feito bainha de saia.

Do sítio sobrou a casa,
Os pés de café virados pra porta
Como filhos ansiosos.

E depois ficou só o quarto,
Quatro paredes caiadas
E uma janela sem postigo.

E esse tempo todo,
Enquanto a sua rija geografia
Se recolhia para dentro de si,

Algo nele se desdobrava
Leve e evaporante
Como um guião de renda,

E se espalhava errante
Por correntes que desconhecem
As coisas duras e limítrofes.


NY, março de 2007

segunda-feira, 26 de março de 2007

Das lides



Dizem do touro quando enfia as hastes
Pelo fato do toureiro:
Enganchou.
Dizem do toureiro quando mete a lâmina
Pelo couro do touro:
Deu o golpe de misericórdia.
E quando eu atravessar a sua gravata e o seu peito,
E quando você me perfurar a saia e o ventre,
Dirão o quê desta nossa festa?
Os eufemismos de madrepérola
Não nos bastam. Nesta corrida
Já não se gastam sequer
Bandarilhas, nem essa tal
Misericórdia.


NY, março de 2007

Quarto-de-dormir



Você acorda e morde logo um poema.
Sacode a cabeça feito um cão,
Testando a resiliência.
As pontas se esfarelam
Porém a estrutura resiste.

Eu saio da cama dando cambalhotas
Pela alcatifa de palavras.
As que eu esmago com as costas
Estilhaçam em sílabas.
Outras engancham no meu cabelo
E umas letras nos cílios.

De noite vai dar um trabalho daqueles
Varrer este quarto.
E depois ninguém terá
Nada mais a dizer.


NY, março de 2007

domingo, 25 de março de 2007

Glossário de ofícios fundamentais



Um banqueiro é um minúsculo nódulo
Pra captação de capitais.
As moedas derramam
Das douradas artérias.


Um poeta é um diminuto triturador
Das causas sentimentais.
As palavras fogem da boca,
Cometas ascendentes.


Um bailarino é um miúdo regente
De moléculas banais.
No corpo, borbulha um pressentimento:
Altas mutações.


Um faxineiro é um pequeno restruturador
De poeiras astrais.
Redescobrimento: o si como nexo
De infinitas estrelas.


Um filósofo é um desacelerador-mirim
De pensamentos fatais.
Estes freios desgastados
Vão me liberar.



Sobrevoando Goiás, março de 2007

sexta-feira, 23 de março de 2007

Memento



Mas aqueles eram outros tempos.
A gente vestia outras roupas, usava
Outros nomes ainda. O sol era de ouro,
A vida, de gelatina.

Hoje o mundo tem algo triste na barriga.
Em mar de moça prenhe, um
Inchaço de lombriga.

Olha a vida hoje,
Atolada no presente feito um fusca no barro.
E o futuro, com sua pátina cisplatina
Aparece no peitoril:

Uma lasca de rubi
Sob o freio da língua.


Rio de Janeiro, março de 2007

quinta-feira, 22 de março de 2007

A mesa



Entre duas conversas desencontradas
Ele dobra o guardanapo sobre a mesa,
Declara:
Sou um deserto de emoções.
Ninguém ouve. As conversas desencontradas
Prosseguem. Risos e vinhos se sobrepondo,
Uma noite indiscutívelmente engraçada.

Ele encaixa a voz no espaço entre as palavras
(Que só ele entende ser silêncio),
Se diz que está vazio.
Como se devesse sentir-se pleno,
Recheado feito um profiterole,
Cheio como a lua cheia,
A pança redonda do vizinho sebento.

Alguém pausa, reparando na sua
Ausência presente, na sua
Presência ausente.

Ela pausa no meio da risada,
Encaixa a mente no vazio
Que precede os diálogos:
Sou uma ilha de emoções.
Tudo o que tenho
Mal cabe dentro de mim, e ao meu redor,
Há só o vasto e arisco mar.

Lacrado sob vácuo,
Ele não percebe. Aos poucos
Ele vai evaporar na areia.
Aos poucos
Ela vai se afogar na água.

As taças já secas e enfileiradas na estantes,
As gargantas já lavadas do riso,
Daquela conversa jamais-tida
Sobra apenas
Uma pequenina vertigem,
Coisa pra poema.


Rio de janeiro, março de 2007

quarta-feira, 21 de março de 2007

Sermão



Eu, que me deleitava com migalhas,
Hoje cobiço a padaria.


Rio de Janeiro, março de 2007

segunda-feira, 19 de março de 2007

Você era



Frágil demais
Para este reino.
Flor-de-ipê.

Pele de pergaminho
Num mundo de dermes
Feito escudos de pinha,
Couros escamados,
Bicos de rapina.

Açucarada onde corre ácida
Uma seiva antiga
E fatigada.

Então, sei que
Você não nasceu
Pra durar.

Até os jornais te machucavam.
A gente recortava as manchetes mas
Você vislumbrava os vazios
E deduzia tudo.
Ou: adivinhava tudo.
Ou: extrapolava tudo.

E logo te brotavam
Os hematomas
Nos flancos da alma. E
Todos os curativos
Se esfacelavam.
E de cada ferida
Despontava uma arara triste.

E ninguém -- nem eu
Nem meus reis nem meus vizires
Nem meus magos nem meus faquires--
Ninguém
Soube te segurar.


Rio de Janeiro, março de 2007

sábado, 17 de março de 2007

Poema primeiro de guerra



Soldado de papel
Atravessando o detector de metais
Você vem ou vai pra sua guerra
E ela é ou não de papel?

Soldado
Ponha as suas botas em pé na bandeja de plástico
Soldado
Ponha a bandeja na esteira e vira pra mim
Escuta só

Ontem eu sonhei com as suas botas
E com os seus comandantes de papel
Eles me despachavam pra sua guerra
Pra dançar nos seus campos minados
Um balé muito mortífero e cômico demais
Eles foram generais generosos
Me puseram até um caixão de origami
No bolso da farda (Just in case)
E nas botas cadarços fortes como tripas

Mas soldado
Quando quando a guerra veio até mim

Ela já não era de papel

Ela furou a minha nuca

Onde eu ainda tinha

Penugem-de-nenê

Com bala de aço.

Soldado de cartulina com o seu
Fusil de cartulina
Pra quem ou por quem
Você se oferecerá
E com que desconto, parcelamento, com que
Ticket-refeição?


terça-feira, 13 de março de 2007

Umami



Um emaranhado de enguias miúdas.
A Yoko ri com os dentes:
A delicacy!
Uma melena marinha, medusa
De um quinto sabor,
Dedilhando a minha boca
Entre punhados reconfortantes de arroz.

E a vida, esse aperitivo
Que eu sempre acreditei oscilar
Entre doce, salgado, azedo, amargo,
Ela então sorri de si mesma e (feito eu)
Ganha um novo nome.


domingo, 11 de março de 2007

Eu me propago através do espaço



Que manhã possante, polissilábica.
O fulano do mês está me achando:
Extra-viva.
Radiante. Radioativa!
Desprendendo saraivadas de íons.
A derme estalando, armando no céu
Vastos campos magnéticos, tantalizantes
Espetáculos boreais. Altas
Abóbadas abóboras.
Puro plutônio em calda. Menina-bomba,
Cabeça-de-cogumelo,
Moça-sobremesa! Vai um naco aí?
Ah-- muito cuidado.
De onde tiro tanto explosivo
Combustível?
Bonequinha vampírica,
Títere de mil anelos, eu
Hei de vazar as vossas veias.


quarta-feira, 7 de março de 2007

Roleta de vidro



Se você disser pra pular,
Eu pulo.
Nós fomos sempre assim,
Os dedos dos pés agarrando a quina da tábua.
Prontos pra rasgar a membrana d'água.
Profundezas soturnas ondulando sob o píer, ou talvez:
Pedregulhos afiados querendo nuca, prometendo
Altas paralisias.
Eu ouço ainda os teus desafios incautos,
Aquele teu faiscante meio-desejo
De nos matar.
O meu tórax incandescente
Latejando, impregnado,
Meio-querendo não te amar.
Arriscando tanto por tão pouco.
Ainda hoje somos assim.
Esta líquida geografia, quanta
Fútil precaução.
Mesmo desde aí,
Se você disser pra pular,
Pior que eu ainda pulo.

No fundo e no final de cada dia
Eu quero apenas
Me enroscar na serpente
Martelar um pífio verso.


domingo, 4 de março de 2007

Cigarra



Ninfa sedenta de seiva
Atarracada e robusta
Nascendo - parindo - expirando -
Entre mil irmãs sincronizadas.
Muda feito a morte,
Atenta ouvinte de violinos equidistantes.
Delicadamente articulada.
Algum dia você renascerá
Noutra pele.
Desvencilhada desta tua
Triste carapaça.
Uma fugidia fênix,
Teu penhoar de papel
Pendurado no tronco hospedeiro,
Tênue-trêmulo ao relento:
Souvenir de quem você terá sido.
Pois chega um momento
Em que se diz e se repete:
Fodam-se os caçadores noturnos.
De guerreira você se fará
Leitosa sentinela da noite,
Uma desempecilhada flor,
Orquídea honesta,
A cara aberta e redonda como a lua.


quinta-feira, 1 de março de 2007

Distúrbio



No miolo da noite
A possibilidade do amor te desperta.
Papoulas estridentes
Perfurando o breu, deturpando
A tua bem-cuidada
Louçania.


segunda-feira, 26 de fevereiro de 2007

Maputo


Você me persegue:
Uma dor fantasma.
Plugues de cimento nos ralos
E a perna amputada.
A voz, a voz rouca
Embargada.
A quantos meses de distância estamos?
A mil passados, a dois em frente.
Abraça os teus filhos
Vomitando guerra.
Desdobra a tuas árvores frondosas,
Derrama sombra no rubro solo.
Você me pôs na barriga
Uma fome insustentável.
Cidade coxa,
Serei tua de novo.
Já não sei mais não ser.


sábado, 24 de fevereiro de 2007

Hilda



Andei procurando poemas da Hilda Hilst traduzidos para o inglês. Como não achei quase nada, resolvi traduzir. Aqui vão alguns trechos de "Alcoólicas" e "Do desejo":


http://www.brazilpoetry.blogspot.com




quarta-feira, 21 de fevereiro de 2007

África



Nos meus sonhos
A África me aparece
Em forma de mulher.
Me agarra pelos punhos,
Me arrasta, eu esperneio,
Amedrontada.
Ela usa perneiras de cobre.
Ela canta um canto cigano. Ela
Me passa os dedos compridos
Pelos cabelos, me chama pelo
Nome da minha mãe,
Tira um pássaro da minha boca,
Me nina e me acusa.
Num sonho destes ela me uiva:
Sobe nas minhas costas,
Eu te dou carona.
Eu sempre tenho vergonha,
Apetrecho do medo. Ela
Me carrega. Eu viro menina.
Tento explicar que minha casa
Fica proutro lado,
Em vez de palavras me saem
Bombas de algodão pela boca.
Eu suo. Ela chora.
O que voce quer de mim?
A tua tristeza,
Pra tecer meu capim.
Nos meus sonhos
A África me aparece
Em forma de noite,
A boca aberta
Engolindo a terra.



terça-feira, 20 de fevereiro de 2007

Manga



Quanta pesada espera, mangas
Murchando na mangueira.
Chão dói, é menina
Mas dependurada no tempo
A vida se esvai.
Cai, menina, cai.


Uma visita sua (II)



Uma visita sua
é um copo de água fresca,
é a água e o copo
e a mão que segura o copo.
Em dias que eu não tiver mais copo
faz as mãos em concha
que te darei água fresca.
Em dias que eu não tiver mais água
faz as mãos em flor
eu saberei conjurar a água.
Uma visita sua
é em si um copo de água fresca.

A tua ausência
é um leito seco de riacho.
Barro duro e rachado,
ossos encrustados no chão.
É as margens ásperas dos meus lábios,
os sulcos vazios, palavras num vão.
Eu rôo a tua ausência
até sobrar só um pitoco.
Eu descasco a tua ausência
Até restar só o caroço.
Faz falta a sua visita
como um rio de água fresca.

domingo, 18 de fevereiro de 2007

Fascinação com o ovo (III)



O que páre o ovo
É tão imperfeito
Quanto o que o ovo páre.
A linha óbvia do casulo
Esconde o caos latente.
Uma gema não se agüenta.
Uma clara, manso ungüento,
Libertada chora e chora.
Um pinto embriônico
faz nojo. A crosta perfeita
Pujança efêmera, chocalho de deus.
Tudo é. Assim sou eu.


sábado, 17 de fevereiro de 2007

Confissão no éter



Você ainda me é presente,
uma vontade suspensa no âmbar.
Eu te vejo deitado no carpete
Entre revistas, copos, um chaveiro.
Os olhos fechados, nas quinas da boca
Uma ameaça de sorriso. Você sabia
Que ela estava tirando a foto?
E se eu te dissesse
(O que nunca te direi)—
Que ainda te procuro em tudo
E em todos com quem ando?


sexta-feira, 16 de fevereiro de 2007

Mulher



O útero te pesa como
uma pêra em calda.

Quantas vezes
Os filhos que você não teve
Puxam a bainha da tua saia.

Na televisão o juiz de direito
Ordena:
Embalsamem o ídolo caído.

Dia e noite o teu coração
se estilhaça:
noventa mil cacos espelhados.


quinta-feira, 15 de fevereiro de 2007

Rosna



Rosna
Filhote
Rosna
Escancara a boca, engole o céu--

Enfia as presas no flanco da noite
Arranca os brilhantes do veludo breu.

Guarda esta lua na tua pança
roliça e ferina—

E rola pela relva, reduto seu.
Faz vibrar or ar e os montes
Com teu bafo quente—

Quanta coisa linda e mortífera escreves
Com esta tua
Coreografia.


quarta-feira, 14 de fevereiro de 2007

Acordei



Tal qual uma
Bexiga
Cheia de
Vinagre.

Pra
Arrebentar.
Quanta coisa
Ardida por
Dentro.

Alguém
Me mostre:
A Porta
Que leva de volta
Aos potes de mel.


terça-feira, 13 de fevereiro de 2007

Filhos



Mães, videm os seus filhos,
Os seu Insossegados filhos, que
De quanta coisa além das suas contas
Serão capazes estes seus filhos.

Zelem pelos seus filhos, vocês Mães,
Dêem-lhes do leite doce e gordo,
Dos quartos limpos e arejados,
Da água clara, da fruta fresca e sem verme.

Cuidem dos seus filhos, mas sem
apego excessivo:
Uns poucos filhos serão
heróis, e a maioria Homens Bons,

Mas lembrem-se que mesmo
entre filhos de boas Mães
Haverá um e outro do qual se dirá:
Monstro.

Isso é sabido por qualquer um
Que lê os jornais e assiste televisão,
Onde mães enterram filhos e outras
enterrariam (de vergonha) os seus.


domingo, 11 de fevereiro de 2007

Resguardo



O mundo é morno e manso e você não fazia idéia.
No coração da montanha na ilha de gelo
Homens de uniforme estocam sementes num cofre.

Quando você aprendeu este cálculo?
A antecipação de catástrofes.
Quanta bizarra matemática.

Você guarda tanta coisa sob lacres
A mil léguas de profundidade. Quatro metros
De concreto armado e aço. Portinhola e escotilha.

Uma onda gigante te varre as bordas,
Você afunda os calcanhares até a manta da terra.
Você se imagina gigante-- que venham as tsunamis--
mas o leito do oceano não descansa, nem o céu do planeta.


Das pequenas artes



Teço da minha saliva
Uma teia platinada, libero
Enzimas digestivas

Faço do meu corpo inteiro
Um punho cerrado
Esbranquiçam-se as juntas

E minha goela que dilato
Pra encaixar o que me vier
(mesmo que me falte lastro)

Estalo meus ossos, repuxo
De seus melados nichos
Úmeros e falanges, dentes e costelas.

A que outro ardil recorrer?
Te agarro na carreira:
Digerir antes de repensar.


sábado, 10 de fevereiro de 2007

Passagens



Os anos te perfuram e te percorrem.
As aves migratórias em formação de seta.
Os namorados e suas malas, as casas que ficam e fogem,
os países que te atravessam.

Se você enterrar seus pés na terra
e esperar um bom bocado
vai criar raízes nas solas.
Dizem. Eu acho que não:
você atravessa vastas escuridões perdidas
lacradas noutras vastas escuridões perdidas,
e em cada porto percebe que neste universo
quase nada de constante há.


sexta-feira, 9 de fevereiro de 2007

Diurnas



I.

Debruçado sobre o perfume do asfalto
este teto de céu se agita e espuma—
(Ouça: na casa,
o ralo borbulha.)

O dia promete incertezas e
você se cala, soturna.


II.

Aves de rapina
traçam círculos
em descenção—

qualquer desfecho virá num mergulho feroz:
um brado estridente,
três penas em fuga,
qualquer luta
risívelmente em vão.


III.

Ou então: você e o dia
se entreolharão -- perspicazes, vasculhando.
Sem querer entregar
o próximo lance.

Um passo em falso e ele te arranca
peões,
te assassina
rainhas e reis.


quarta-feira, 7 de fevereiro de 2007

Trio noturno



A casa range.
Tristezas me esfolam.
Você se revira na cama.

Eu derrubo palavras.
A casa suspira.
Você prende a respiração.

Janelas exalam.
Você se acomoda nos seus ossos.
Eu arranco de mim mesma

um magro verso.


terça-feira, 6 de fevereiro de 2007

Do amor

(Resposta a Aldo Guerra)


Eu escrevo sobre o amor
porque o amor é caolho
e meu mundo, enviesado
clama por ângulos
inesperados.

Eu falo do amor
porque ele me escapole das mãos
feito uma enguia
que se devolve, debatendo,
ao mar.

Eu futuco o amor
em busca de coisas perdidas—
e de outras
jamais tidas.

Eventualmente, eu me faço
à semelhança do amor,
mel e vinagre numa cuia sem fundo.

Eu me faço como o amor,
pleno e amplo e claro.
Eu me faço como o amor,
raso e vazio e oculto.


segunda-feira, 5 de fevereiro de 2007

Sou



Coisa ferina
de testa amarela
no tempo incolor.
(Diz ele:)
Indesdobrável.
Indomesticável.
Saltando de mês em mês
em mês
como em pescoço de rês
de rês de rês.
Ai que delícia
espreitar presa na relva—
codorna gorducha,
menina sem dono,
cachimbo de flor.
Vára-me, raio de sol—
antes que te engula
como fiz com os outros.
No sol, no sol, no sol.


Humor vítreo



Apertar os olhos até doer—espremer bem.
Empurrar os glóbulos contra suas órbitas até

fazer espocar no escuro aros vermelhos
de meia-luz contra o meio-escuro das suas

pálpebras. A sua mãe vai dizer: pára com isso,
que coisa mais aflitiva. E ainda por cima

um dia essa menina ainda me acorda cega.
Pode ser. Mas se você enxergar ou mesmo

achar que enxerga algo atrás destas membranas
vascularizadas, então você começará a entender

muita coisa que nunca te disseram até porque
esqueceram de investigar. Então talvez valha

a pena correr o risco de perder as cores
do mundo se você sair dessa pelo menos

com uma noção de como funcionam as coisas
que só se mostram em meios-escuros. Mas

lembre-se que desde pequena você sabia
que com certo ângulo de luz com os olhos

abertos se vêem microscópicas partículas
que flutuam na superfície do olho, talvez

células ou poeiras que pousam na íris e
nadam subindo quando você olha pra cima e

nadam pra baixo quando você olha pra baixo
feito plâncton flutuando na superfície do mar,

com aquele atraso manso. E essas coisas contam,
a olho nu ou fechado-- essas coisas sempre contarão.


domingo, 4 de fevereiro de 2007

Alguns poemas lidos no sarau do 3 de fevereiro



- Carlos Drummond de Andrade “A bunda, que engraçada”
- Maria Telles Ribeiro: “A louca”
- Vinícius de Moraes: “Poema enjoadinho”
- Pablo Neruda: “Oda al gato”
- Carlos Drummond de Andrade “Missão do corpo”
- João Cabral de Melo Neto (trechos) "Morte e vida severina"
- Adélia Prado: “Com licença poética”
- Maria Telles Ribeiro: “A vigília”
- Exposição sobre Vik Muniz
- Trechos brilhantes de artigo da revista NOVA (ou terá sido Cosmopolitan?)


A primeira viagem de Kapuscinski (Ia parte)



O jovem Ryszard,
enxergando pela primeira vez o mundo
(bem maior do que ele tinha pensado)
sob as asas enegrecidas do DC-3,
comoveu-se.
Roma estendia-se ali embaixo:
Um enxame de luzes.
E logo, em Roma pousado,
perambulando pelas ruas:
histerismos de cores e de vozes.
Mesinhas nas calçadas.
Um mundo a muitos mundos
de Varsóvia. Do cinza impassível
que deixara atrás: sussurros afagando
a penumbra.
Ele lembrou da sua fome de fronteiras.
Quase uma obsessão: ver (e apenas ver)
o que havia do outro lado. E logo voltar,
a fome saciada. E nada mais.
E logo, o segundo trecho da sua jornada,
num pássaro de aço com mulheres de sári
que o guiaram até a India. Foi ver o homen,
o tal Nehru, que havia perfurado
o céu de Ryszard assim como ele, Ryszard, o fazia
agora com o céu de Nehru.
Déli à noite: um mar de branco no asfalto
se apartava à frente do táxi. Velhos e crianças
se levantavam pro mem sahib passar.
Quando um velho de turbante chegou no
Seu quarto com biscoitos e chá, o jovem
enrubrou-se, desnorteado pela servitude
de outro ser humano.

Fascinação com o ovo (II)



Um ovo,
simplesmente é.

De si:
auto-criação.

Sossegado, aguardando. O quê?
Sei lá. Ué.

Eu nasci
anti-ovo, puro irrequieto

Movimento.

sexta-feira, 2 de fevereiro de 2007

sem título


Na sala de jantar
geleiras se desprendem da calota,
se lançam ao mar.
Coisas grandes suspiram e desistem,
rangem e racham, desmoronam.
Montanhas—
Abismos—
Paredes—
O chão.

As línguas de gelo
deitadas entre meus dedos.
O deserto entre meus seios— meu mar de Aral.
Uma fragata de pesqueiros atolada na areia.
O rei mandou cavar
um canal até a costa
mas esse mar se encolheu
até ficar só uma poça
no meio do deserto.
E não deu tempo.

Porquê você pensou que tudo iria quieto?
O mundo não funciona assim.
O gelo estala de raiva
como o mais estridente incêndio.
A areia enterra tudo
com um susurro escaldante.
O oceano engole as coisas
sempre burbulhante.
E a tudo isso prosseguem: silêncios sufocantes.

As coisas mal-cuidadas
mergulham nágua ou evaporam.
O rei mandou cavar um canal até a costa
mas não deu tempo.


quinta-feira, 1 de fevereiro de 2007

Vitrine



Você vem à minha casa—
Eu cozinho macarrão—
Você me retorce as vísceras—

Eu tenho a boca afiada, é
e os olhos moles, sou puro mel
e cal viva. Abre a boca e engole.

Cheiro a tua frieza pétrea—
Chega mais: você já viu de perto
um coração remendado—
um bule vermelho e roliço
estilhaçado e recomposto?

Superbonder é demais.
Vá pro inferno.
Eu tenho fome e vou jantar sozinha.



quarta-feira, 31 de janeiro de 2007

Poesia mole



amolece
manteiga
tão meiga
me mela
donzela
amarela


terça-feira, 30 de janeiro de 2007

Fascinação com o ovo


O ovo se auto-contém.
Até que alguém o quebre,

o que é ovo é ovo,
e fora dele é apenas o mundo.

Delineando minhas fronteiras,
lembro que a pele escama,

e que as células, casamenteiras,
se atrelam às coisas do mundo.

E que o mundo nos invade.
Ele me adentra pelas narinas,

pelos póros e pela boca aberta em O:
espaço perfeito para guardar um ovo.


segunda-feira, 29 de janeiro de 2007

Cálculo



Este ano seis perdas me golpearam
seis golpes secos de ar
de seis carros de trem
expelido pelo túnel
adentrando a estação
sem intenção de parar
tum tum tum tum tum tum.

De pé na plataforma
embrulhada em cachecóis
eu fecho os olhos, sinto os tapas de ar
no rosto, no tórax, na alma.
Lutos se confundem:
tumtumtum
Partidas se confundem:
tumtumtum.

Tudo aquilo que nos ultrapassa e sobre-vive
quando nós observamos a sua fuga
essas coisas parecem se comprimir, apressadas.
Na verdade elas passam serenas, satisfeitas.
É quem observa que ouve o efeito Doppler.
Encontro certo consolo nessa matemática,
esse insistente cálculo de distâncias de quem fica,
o medir e remedir de amplitudes.


domingo, 28 de janeiro de 2007

O discurso



A lapela do terno
do homem do discurso
é mais negra que
a própria noite.
Ela carece de estrelas.
Ela carece de lua.
E lhe falta também a
auréola luminosa
que desbota a noite
das grandes cidades.
Eu me perco nessa lapela
e no seu breu absoluto.
Eu me encontro no breu
dessa lapela-que-é-poço.
As palavras do homem
por trás dessa lapela
se deslizam desdobráveis
por entre os meus átomos
feito água na peneira.
Mas esse breu—
ele me é sólido e perfeito.
Esse breu me convida, me
transporta e me pára.


sábado, 27 de janeiro de 2007

combinatorix: poesia em rede



I.
Idéias, perdidamente apagadas
tal qual velas—
estas coisas natimortas
porém belas
me impressionam,
me tiram o sono.

II.
Uma libélula
Pousou na cabeça de um fósforo.
Em vez de apagar a chama
fez-se parte da trama--
em chama,
e logo em cinzas.

III.
Libélula-me!

sexta-feira, 26 de janeiro de 2007

Legado



Ontem habitou-me
um instante de clareza,
límpido e fugaz.

Um glóbulo de vidro
puro e transluscente
alojado como uma bala
no lodo tenebroso
do meu cérebro.

Escapuliu.

Deixou atrás
uma ligeira
indentação.

A sensação de
ter hospedado
uma pequenina perfeição,
redonda e transparente,
sem recordar
o exato recado.
Uma pegada
na margem do rio.

Alguma coisa mudou.
Vou preparando
meu toque de retirada.

Hoje amanheço
com a cabeça entupida.
Um coro canta canções
que viram esquinas
e viram outras
canções que entopem
outras cabeças.


quinta-feira, 25 de janeiro de 2007

Cidade


Um ventre estriado de tão prenhe
treme, gemendo se parte.

A terra páre antenas, caixas d’água.

Prédios despontam do lodo, sobem
ao teto do mundo.

E logo, tudo aquilo que se faz chão:
calçadas, ruas, poças, praças.

Das fendas do concreto brotam sedentas
as coisas monossilábicas e atentas:
pombas e ratos, traças e traças.

E tudo, na ponta dos pés,
agüarda.


quarta-feira, 24 de janeiro de 2007

Uma visita sua



Uma visita sua
é um copo de água fresca,
é a água e o copo
e a mão que segura o copo.
Em dias que eu não tiver mais copo
faz as mãos em concha
que te darei água fresca.
Em dias que eu não tiver mais água
faz as mãos em flor
eu saberei conjurar a água.
Uma visita sua
é em si um copo de água fresca.


Papéis achados



Papéis achados em banco de trem
contam do poderio bélico de nações ociosas,
madames rechonchudas reclinadas
em canapés aveludados, brincando
com o que não lhes pertence--
Jóias-- Mimos-- Vidas-- Auroras--

Jornais voltam atrás, o vento corriqueiro
de túneis subterrânos se enfia por brechas
por fendas de janelas como escapam as palavras
por entre meus lábios, que eu pensava cerrados.
Essas pontas de vento rearrumam letras,
recombinam sílabas, desviam tramas
como se descarrilha um trem.

O papel, mensageiro-celulose, grava
impressões de quem lhe passa os olhos,
vê sua mensagem desfiada, recomposta, transfigurada.
Papéis achados, nem bem mais virgens, contam
estórias mas qual delas verdades,
qual delas lorotas?


terça-feira, 23 de janeiro de 2007

Umas palavras me visitaram na noite



(este aqui deve os pés e a cabeça ao R. Rech)


Umas palavras me visitaram na noite.
Me pediram pra costurar em poema.
Me faltava fio de sêda pra alinhavar,
então deixei estar. As sílabas murcharam,
cada uma encolhendo-se em si,
uva-passa no negro breu.

Umas palavras me abandonaram na noite.
Herdei a sensação de ter pensado
pensamentos alheios. Ou então foram eles
que me repensaram. E logo, a fuga veloz:
vupt! Seqüestro-relâmpago.


segunda-feira, 22 de janeiro de 2007

Da cabeceira da mesa



Tem uns céticos, cá e lá
que me acham muito nova e
muito, mas muito pequena mesmo
pra falar de coisas tão antigas
que chegam a rachar os teus ossos,
e tão imensas que na verdade
nunca couberam em lugar
algum. Idéias, como torres,
altivas e solitárias e eu,
"tão pequenina que não pode ser."

Um aluno, esse me sangra
cada vez que piso na sala:
Você vai mudar a minha vida
ou o quê?

Zangado, implorando.
Meço meus poderes,
acho no fundo do bolso
uma miudez prateada,
uma coisa úmida e fria,
um peixe engasgando
na ponta de vida que lhe sobra.



domingo, 21 de janeiro de 2007

Protesto em solene defesa da Orquídea

Caros leitores,

O meu colega Chico, do Mato Grosso, escreveu protestando contra o meu poema “Orquídea,” (do 8 de janeiro deste ano) explicando que a tal flor não é planta parasita. Após breve pesquisa, constatei que realmente é o caso. Pois bem. Controvérsia até que eu curto, mas difamação de caráter, por mais que de natureza botânica, nunca fez bem a ninguém. Então: alguém aí sabe de alguma flor parasita que cresce em tronco d'árvore? De repente é só trocar a flor (êta preguiça de poeta).

Com mil desculpas à ordem Asparagales, à família Orchidaceae, e às orquídeas brancas da rua dos meus pais.

"Orquídea"
http://palavrogramas.blogspot.com/2007/01/orqudea.html



Quando a passarinhada se reúne
na copa da mangueira pra farrear,
até que árvore se confunde com pássaro
e a árvore-pássaro começa a pulular,
aí, Vô—
me dá uma saudade rasgada de você.


sábado, 20 de janeiro de 2007

Seis curtas sobre a neve e o sal



A neve

Mesmo depois de tantos anos
a neve me faz sentir de novo
estrangeira.

A água

A água é a neve em estado líquido.
Sou 80% neve -- num dia bom.
Estrangeira em mim mesma.
O resíduo sólido
esse eu conheço bem.

O ovo

O ovo é uma pequena morte
rebobinada até antes do início da fita.
E contém a neve
(com a qual se fabrica um ser).

A sede

Sou 80% água. Choro até os 75%.
A partir deste patamar, diz o doutor,
devo me recompletar.
Eu como a neve.

A lágrima

Portanto a lágrima
é uma espécie de subtração.
E ao mesmo tempo, justa devolução
(de sal, ao mundo).

O sal

Da água faz-se a lágrima:
Há que puxar a água de dentro de si
como de um algibe,
agregar o sal.
E é com o sal
que se derrete a neve.


sexta-feira, 19 de janeiro de 2007

Coffeeshop



O casal ao lado discute os termos do divórcio.
Dois pares de pernas desencontrados. Ela prossegue
com tom de executiva. Ele se queixa,
manhoso. Diz que a vida assim está:
intransitável. Ela pede que ele assine

aqui, aqui e aqui.

Uma neve ligeira paira,
hesita sobre a rua, logo
se resolve e polvilha o cinza.
As costuras da calçada vão sumindo.
Coisas etéreas pousando num mar de concreto,
abafando as miudezas da vida.

Daqui vejo que a cidade na verdade é três:
a primeira, horizontal, das calçadas,
das praças e dos divórcios.
A segunda, vertical, dos arranha-céus
e dos cânions de ar que se alojam entre os prédios.
E a última, horizontal, das coberturas e
terraços,cada um sob sua caixa d’água,
sentinela gorda em tripé com chapéu chinês.

Eu pairo sobre meu livro entreaberto,
e revoluções me eludem.
Para compreensão geral do mundo, assine

aqui, aqui e aqui.


quinta-feira, 18 de janeiro de 2007

Fuga



A criatura que aterrisa no balcão da pia
é uma coisinha de cêra rosada e transparente.
Os olhos bolas pretas, esbugalhados.
Os dedos estirados agarrando o mármore,
o corpo tenso e inerte. Alerta.

A tua fragilidade e a tua pequenez
me comovem até o útero.
Mesmo assim (ou talvez, por isso mesmo)
você não cabe na minha vida.

Eu ofereço uma ponta de revista,
carona de volta à varanda.
Ela dispara parede acima, rumo a cantos escuros,
becos sem saída.

Sinto uma pontada quente de remorso.
Nalgum instante da vida fomos todos assim,
fetos espantados
apostando na tensão de superfície.



quarta-feira, 17 de janeiro de 2007

Vigília



O chão do mundo é tênue,
despenca fácil. Uma
membrana estirada.
No coração da cidade
a boca da terra boceja,
engole guindastes e gente.

Quisera pisar este chão
com leveza de guará.
Mas os calcanhares
se afundam no solo fofo.
A cada passo sinto
um punhado de terra
se deslocando,
crateras famintas
ainda por nascer.


terça-feira, 16 de janeiro de 2007

Como atravessar esta semana



Abrir a boca em O
prender a respiração.

Mergulhar a cabeça n’água
empurrar com os pés
o azulejo.

Sobretudo: completar a travessia
sem vir à tona.

Mesmo quando os capilares dos pulmões
começarem a pipocar.


segunda-feira, 15 de janeiro de 2007

Poema de quem vai



Na despedida do Rio
faço um poema piegas
logo seco o poema
resta um grão de sal.

Sais e lembranças
puxam água do ar,
e digamos que eu
me diplomei em chorar.

O grão incha em pedra
me pesa no bolso
desnivela a saia.
Quando fura o forro
e despenca no chão,

aí eu apanho na mão.
Então lhe dou nome: Saudade.
A pedra sussurra
que é tempo de voltar.


domingo, 14 de janeiro de 2007

Difenidramina



Deitada de bruços, o tórax se dilata,
portões ósseos rangendo de leve se entreabrem.
Um fatigado coração se afunda colchão abaixo
como um pequeno animal latejante e sonolento
até que se aninha entre espumas, molas, forros,
coisas moles de poliuretano, plumas.
Livre do peso, você sente debaixo do
peito os batimentos: um batuque longínquo, abafado.
Um tambor forrado de feltro,
uma procissão em bairro vizinho.
Que sensação estranha: de uma só vez,
soberania e entrega. Nem bem um desassossêgo.
Nada esvaziado resguarda o seu próprio vácuo.
É no escuro entremeio entre o vero sono
e o vivo alerta que aluga-se o tórax a coisas amenas.
Coisas de uma doçura indescritível, de bordas torneadas.
Mesmo assim a calmaria recua como a maré,
lenta e constante.
Rogas aos teus inquilinos noturnos
que adiem a partida: -- Fiquem! É cedo ainda.
Mas o batuque recresce, curto e seco.
O animal emerge da toca, se aloja novamente
no baú-pandora das tuas costelas quebradiças.
Procissões se exaltam, emendam alas,
desfilam pelo teu corpo que não tem opcão
fora entregar-se ao dia.


sexta-feira, 12 de janeiro de 2007

Jóia

(para Tia Lucinha)

Talha-se do metal
um brevelíneo poema.
Um haicai
que se enrosca
no dedo.
Um par de rimas
que brincam de brincos.
Um soneto feito círculo que se lacra em filigree:
uma gargantilha, um colar de voltas.

O ouro, editado a marteladas
e ternamente polido
vai cedendo as suas metáforas.
Gemas devolvem brilhos—
tal qual sílabas, lapidadas.

Jóias, como versos,
varam tempos e universos—
Atravessam oceanos, emendam gerações.
Fundam impérios, parem nações.

No fundo eu e você
compartilhamos um único ofício,
prólogo da alquimia:

a poesia,
e sua prima ferramenteira,
a ourivesaria.


quinta-feira, 11 de janeiro de 2007

Libélula



Trêmulo helicóptero
esquivando-se em quinas
da língua que de um estalo
dispara e se retrai.


quarta-feira, 10 de janeiro de 2007

Deslize



O cinza-chumbo se retorce e racha,
a água se faz em corda e despenca.
O barro sorve a água, se transfigura
em lodo. Terra se desprende de pedra
que no lodo desliza e se soterra.

Mata, casas, filhos debruçados no morro
vislumbram penhascos onde antes não havia.
Barrancos grunhem, vomitam, se reviram.
Uma língua pesada de barro
desce a encosta e se deita na estrada.

Ao pé da serra, impermeabilizados
nós que antes encontrávamos alívio
nas chuvas de verão hoje quando
o batuque nas telhas dispara
nos calamos sabendo que na serra
mata, casas, filhos
se desprendem se deslizam se enterram.


terça-feira, 9 de janeiro de 2007

Geografia da insônia



Um cômodo é feito
de camas e quinas.
Meu coração tem leito profundo
e comportas de represa.

Quem dera ser corda de varal:
simples e curvilínea.
No breu eu tropeço
em ninhos de nós.

As janelas recolhem
zumbidos, feixes de luz.
Tudo me tenta,
menos o sono fechado.

Me encasulo em meus pulmões.
Respiro e expelo coisas doídas.
Na noite vazia elas ressoam entre
paredes brancas, pontes, quinas.


segunda-feira, 8 de janeiro de 2007

Orquídea



Raízes estiradas feito mãos franzinas
agarradas ao tronco com desespero de náufrago

As juntas dos dedos esbranquiçadas pelo esforço
e ali desponta o caule, esguio e ereto: pose de militar

ou bailarina de tule branco, as pétalas abertas
ao mundo com uma despreocupação obscena

que abafa o que transparece na raiz:
aquilo que suga e sufoca, índole de parasita.

Ode ao que sobe


No programa de auditório a mulher
do americano cego que escalou o Everest
explica por que casou com ele:
Sempre quis uma vida extraordinária.
A platéia se arrebenta de aplausos.

Caminhando pela praia febril
longe de montanhas de gelo
recomponho o cotidiano
catando respostas nas pedras portuguesas:
branco sim, preto talvez.

A duzentos metros da areia despenca um balão
já sem fôlego, e morrem afogados
quatro rapazes esbeltos
que se encantavam com a graça do mundo
tão detalhado e perfeito lá das alturas,
até que o mar lhes veio ao encontro
bruto e inerte como uma planície de cimento.
Assisto da praia o espetáculo inútil do salvamento.
Daqui o espectro submerso de náilon
parece dançar uma valsa:
uma água-viva cintilante e amarela.

Você se mede por coisas tão grandes
mas hoje eu me aconchegaria
numa concha de mexilhão, que cabe em si
e que sabe que cabe em si.
Um poema verdadeiramente acabado já é vitória.
De resto, me contento em viver
testemunha de peregrinações verticais.
Eventualmente também, por que elas existem,
de suas quedas bruscas e mortíferas.


domingo, 7 de janeiro de 2007

Alguém me perguntou por que escrevo




Remexe-se aquele feixe de nervos saltado
uma dor pequenina e gostosa
empurrar
com a língua o dente de leite solto
sentir
o gosto metálico da gengiva em flor viva
desenterrar

outra coisa que desponta na carne

sábado, 6 de janeiro de 2007

A balzaquiana


Já meio passada,
roliça e machucada
a goiaba madura
perdura e desprende
perfume insistente
que suplica, Faz-me em doce!
Tira proveito da minha
suculência efêmera
desliza o teu gume
pela minha carne dócil
despedaça-me e
com um punhado de açúcar
no brando fogo serei
da tua branca e amena Julieta
um escuro e pungente Romeu.


sexta-feira, 5 de janeiro de 2007

Móbile



________|________
| | |
palavras | teimosas
| | |
pairando no ar
| | | |
sobre a minha cabeça
| | | | | |
por onde seja que eu ande



quarta-feira, 3 de janeiro de 2007

Fusil

Para Escobar Franelas

A escova de flanela
existe e (verifiquei) serve
para polir interior de
cano de fusil, ou seja
por onde disparam-se
balas (ou estrofes,
dependendo da sua convicção).
Note bem que todas elas--
estrofes e balas--
vão de seu frio descanso
ao calor de uns mil graus
no encontro da luz
pela força da fricção
com o cano polido
que as pariu.
Já o destino final
desses projéteis
ora isso é estória pra
milico ou para poeta,
novamente aqui
dependendo da sua convicção.


terça-feira, 2 de janeiro de 2007


O meu violão



O meu violão tem um som
redondo e aberto
como a baía da Guanabara
as notas vão se encostando
feito os barcos na Marina da Glória
duplicados no espelho d'água
é por isso que aprendi a tocar
devagar e leve, com as pontas dos dedos
e a cantar assim, com a ponta da língua
(e a amar assim, com uma ponta de cautela)
dedilhando cada corda
para que cada nota
estale limpa e solitária
como um peixe espelhado
disparando do turbilhão
que rodopia furioso
no fundo do mar.


segunda-feira, 1 de janeiro de 2007

Réveillon em Copabana



Botei vestido branco e fui descalça
dançar na rua entre soldados da PM

um palhaço suado e franzino
me encomendou um sorriso honesto

ganhei em troca um lírio vermelho-ardido
atrás da orelha. a chuva fina ia desbotando

renasceu de anilina no meu peito
a flor espectral de bala perdida

mesmo assim fui pular onda
com meu lírio de sangue na mão