segunda-feira, 26 de fevereiro de 2007

Maputo


Você me persegue:
Uma dor fantasma.
Plugues de cimento nos ralos
E a perna amputada.
A voz, a voz rouca
Embargada.
A quantos meses de distância estamos?
A mil passados, a dois em frente.
Abraça os teus filhos
Vomitando guerra.
Desdobra a tuas árvores frondosas,
Derrama sombra no rubro solo.
Você me pôs na barriga
Uma fome insustentável.
Cidade coxa,
Serei tua de novo.
Já não sei mais não ser.


sábado, 24 de fevereiro de 2007

Hilda



Andei procurando poemas da Hilda Hilst traduzidos para o inglês. Como não achei quase nada, resolvi traduzir. Aqui vão alguns trechos de "Alcoólicas" e "Do desejo":


http://www.brazilpoetry.blogspot.com




quarta-feira, 21 de fevereiro de 2007

África



Nos meus sonhos
A África me aparece
Em forma de mulher.
Me agarra pelos punhos,
Me arrasta, eu esperneio,
Amedrontada.
Ela usa perneiras de cobre.
Ela canta um canto cigano. Ela
Me passa os dedos compridos
Pelos cabelos, me chama pelo
Nome da minha mãe,
Tira um pássaro da minha boca,
Me nina e me acusa.
Num sonho destes ela me uiva:
Sobe nas minhas costas,
Eu te dou carona.
Eu sempre tenho vergonha,
Apetrecho do medo. Ela
Me carrega. Eu viro menina.
Tento explicar que minha casa
Fica proutro lado,
Em vez de palavras me saem
Bombas de algodão pela boca.
Eu suo. Ela chora.
O que voce quer de mim?
A tua tristeza,
Pra tecer meu capim.
Nos meus sonhos
A África me aparece
Em forma de noite,
A boca aberta
Engolindo a terra.



terça-feira, 20 de fevereiro de 2007

Manga



Quanta pesada espera, mangas
Murchando na mangueira.
Chão dói, é menina
Mas dependurada no tempo
A vida se esvai.
Cai, menina, cai.


Uma visita sua (II)



Uma visita sua
é um copo de água fresca,
é a água e o copo
e a mão que segura o copo.
Em dias que eu não tiver mais copo
faz as mãos em concha
que te darei água fresca.
Em dias que eu não tiver mais água
faz as mãos em flor
eu saberei conjurar a água.
Uma visita sua
é em si um copo de água fresca.

A tua ausência
é um leito seco de riacho.
Barro duro e rachado,
ossos encrustados no chão.
É as margens ásperas dos meus lábios,
os sulcos vazios, palavras num vão.
Eu rôo a tua ausência
até sobrar só um pitoco.
Eu descasco a tua ausência
Até restar só o caroço.
Faz falta a sua visita
como um rio de água fresca.

domingo, 18 de fevereiro de 2007

Fascinação com o ovo (III)



O que páre o ovo
É tão imperfeito
Quanto o que o ovo páre.
A linha óbvia do casulo
Esconde o caos latente.
Uma gema não se agüenta.
Uma clara, manso ungüento,
Libertada chora e chora.
Um pinto embriônico
faz nojo. A crosta perfeita
Pujança efêmera, chocalho de deus.
Tudo é. Assim sou eu.


sábado, 17 de fevereiro de 2007

Confissão no éter



Você ainda me é presente,
uma vontade suspensa no âmbar.
Eu te vejo deitado no carpete
Entre revistas, copos, um chaveiro.
Os olhos fechados, nas quinas da boca
Uma ameaça de sorriso. Você sabia
Que ela estava tirando a foto?
E se eu te dissesse
(O que nunca te direi)—
Que ainda te procuro em tudo
E em todos com quem ando?


sexta-feira, 16 de fevereiro de 2007

Mulher



O útero te pesa como
uma pêra em calda.

Quantas vezes
Os filhos que você não teve
Puxam a bainha da tua saia.

Na televisão o juiz de direito
Ordena:
Embalsamem o ídolo caído.

Dia e noite o teu coração
se estilhaça:
noventa mil cacos espelhados.


quinta-feira, 15 de fevereiro de 2007

Rosna



Rosna
Filhote
Rosna
Escancara a boca, engole o céu--

Enfia as presas no flanco da noite
Arranca os brilhantes do veludo breu.

Guarda esta lua na tua pança
roliça e ferina—

E rola pela relva, reduto seu.
Faz vibrar or ar e os montes
Com teu bafo quente—

Quanta coisa linda e mortífera escreves
Com esta tua
Coreografia.


quarta-feira, 14 de fevereiro de 2007

Acordei



Tal qual uma
Bexiga
Cheia de
Vinagre.

Pra
Arrebentar.
Quanta coisa
Ardida por
Dentro.

Alguém
Me mostre:
A Porta
Que leva de volta
Aos potes de mel.


terça-feira, 13 de fevereiro de 2007

Filhos



Mães, videm os seus filhos,
Os seu Insossegados filhos, que
De quanta coisa além das suas contas
Serão capazes estes seus filhos.

Zelem pelos seus filhos, vocês Mães,
Dêem-lhes do leite doce e gordo,
Dos quartos limpos e arejados,
Da água clara, da fruta fresca e sem verme.

Cuidem dos seus filhos, mas sem
apego excessivo:
Uns poucos filhos serão
heróis, e a maioria Homens Bons,

Mas lembrem-se que mesmo
entre filhos de boas Mães
Haverá um e outro do qual se dirá:
Monstro.

Isso é sabido por qualquer um
Que lê os jornais e assiste televisão,
Onde mães enterram filhos e outras
enterrariam (de vergonha) os seus.


domingo, 11 de fevereiro de 2007

Resguardo



O mundo é morno e manso e você não fazia idéia.
No coração da montanha na ilha de gelo
Homens de uniforme estocam sementes num cofre.

Quando você aprendeu este cálculo?
A antecipação de catástrofes.
Quanta bizarra matemática.

Você guarda tanta coisa sob lacres
A mil léguas de profundidade. Quatro metros
De concreto armado e aço. Portinhola e escotilha.

Uma onda gigante te varre as bordas,
Você afunda os calcanhares até a manta da terra.
Você se imagina gigante-- que venham as tsunamis--
mas o leito do oceano não descansa, nem o céu do planeta.


Das pequenas artes



Teço da minha saliva
Uma teia platinada, libero
Enzimas digestivas

Faço do meu corpo inteiro
Um punho cerrado
Esbranquiçam-se as juntas

E minha goela que dilato
Pra encaixar o que me vier
(mesmo que me falte lastro)

Estalo meus ossos, repuxo
De seus melados nichos
Úmeros e falanges, dentes e costelas.

A que outro ardil recorrer?
Te agarro na carreira:
Digerir antes de repensar.


sábado, 10 de fevereiro de 2007

Passagens



Os anos te perfuram e te percorrem.
As aves migratórias em formação de seta.
Os namorados e suas malas, as casas que ficam e fogem,
os países que te atravessam.

Se você enterrar seus pés na terra
e esperar um bom bocado
vai criar raízes nas solas.
Dizem. Eu acho que não:
você atravessa vastas escuridões perdidas
lacradas noutras vastas escuridões perdidas,
e em cada porto percebe que neste universo
quase nada de constante há.


sexta-feira, 9 de fevereiro de 2007

Diurnas



I.

Debruçado sobre o perfume do asfalto
este teto de céu se agita e espuma—
(Ouça: na casa,
o ralo borbulha.)

O dia promete incertezas e
você se cala, soturna.


II.

Aves de rapina
traçam círculos
em descenção—

qualquer desfecho virá num mergulho feroz:
um brado estridente,
três penas em fuga,
qualquer luta
risívelmente em vão.


III.

Ou então: você e o dia
se entreolharão -- perspicazes, vasculhando.
Sem querer entregar
o próximo lance.

Um passo em falso e ele te arranca
peões,
te assassina
rainhas e reis.


quarta-feira, 7 de fevereiro de 2007

Trio noturno



A casa range.
Tristezas me esfolam.
Você se revira na cama.

Eu derrubo palavras.
A casa suspira.
Você prende a respiração.

Janelas exalam.
Você se acomoda nos seus ossos.
Eu arranco de mim mesma

um magro verso.


terça-feira, 6 de fevereiro de 2007

Do amor

(Resposta a Aldo Guerra)


Eu escrevo sobre o amor
porque o amor é caolho
e meu mundo, enviesado
clama por ângulos
inesperados.

Eu falo do amor
porque ele me escapole das mãos
feito uma enguia
que se devolve, debatendo,
ao mar.

Eu futuco o amor
em busca de coisas perdidas—
e de outras
jamais tidas.

Eventualmente, eu me faço
à semelhança do amor,
mel e vinagre numa cuia sem fundo.

Eu me faço como o amor,
pleno e amplo e claro.
Eu me faço como o amor,
raso e vazio e oculto.


segunda-feira, 5 de fevereiro de 2007

Sou



Coisa ferina
de testa amarela
no tempo incolor.
(Diz ele:)
Indesdobrável.
Indomesticável.
Saltando de mês em mês
em mês
como em pescoço de rês
de rês de rês.
Ai que delícia
espreitar presa na relva—
codorna gorducha,
menina sem dono,
cachimbo de flor.
Vára-me, raio de sol—
antes que te engula
como fiz com os outros.
No sol, no sol, no sol.


Humor vítreo



Apertar os olhos até doer—espremer bem.
Empurrar os glóbulos contra suas órbitas até

fazer espocar no escuro aros vermelhos
de meia-luz contra o meio-escuro das suas

pálpebras. A sua mãe vai dizer: pára com isso,
que coisa mais aflitiva. E ainda por cima

um dia essa menina ainda me acorda cega.
Pode ser. Mas se você enxergar ou mesmo

achar que enxerga algo atrás destas membranas
vascularizadas, então você começará a entender

muita coisa que nunca te disseram até porque
esqueceram de investigar. Então talvez valha

a pena correr o risco de perder as cores
do mundo se você sair dessa pelo menos

com uma noção de como funcionam as coisas
que só se mostram em meios-escuros. Mas

lembre-se que desde pequena você sabia
que com certo ângulo de luz com os olhos

abertos se vêem microscópicas partículas
que flutuam na superfície do olho, talvez

células ou poeiras que pousam na íris e
nadam subindo quando você olha pra cima e

nadam pra baixo quando você olha pra baixo
feito plâncton flutuando na superfície do mar,

com aquele atraso manso. E essas coisas contam,
a olho nu ou fechado-- essas coisas sempre contarão.


domingo, 4 de fevereiro de 2007

Alguns poemas lidos no sarau do 3 de fevereiro



- Carlos Drummond de Andrade “A bunda, que engraçada”
- Maria Telles Ribeiro: “A louca”
- Vinícius de Moraes: “Poema enjoadinho”
- Pablo Neruda: “Oda al gato”
- Carlos Drummond de Andrade “Missão do corpo”
- João Cabral de Melo Neto (trechos) "Morte e vida severina"
- Adélia Prado: “Com licença poética”
- Maria Telles Ribeiro: “A vigília”
- Exposição sobre Vik Muniz
- Trechos brilhantes de artigo da revista NOVA (ou terá sido Cosmopolitan?)


A primeira viagem de Kapuscinski (Ia parte)



O jovem Ryszard,
enxergando pela primeira vez o mundo
(bem maior do que ele tinha pensado)
sob as asas enegrecidas do DC-3,
comoveu-se.
Roma estendia-se ali embaixo:
Um enxame de luzes.
E logo, em Roma pousado,
perambulando pelas ruas:
histerismos de cores e de vozes.
Mesinhas nas calçadas.
Um mundo a muitos mundos
de Varsóvia. Do cinza impassível
que deixara atrás: sussurros afagando
a penumbra.
Ele lembrou da sua fome de fronteiras.
Quase uma obsessão: ver (e apenas ver)
o que havia do outro lado. E logo voltar,
a fome saciada. E nada mais.
E logo, o segundo trecho da sua jornada,
num pássaro de aço com mulheres de sári
que o guiaram até a India. Foi ver o homen,
o tal Nehru, que havia perfurado
o céu de Ryszard assim como ele, Ryszard, o fazia
agora com o céu de Nehru.
Déli à noite: um mar de branco no asfalto
se apartava à frente do táxi. Velhos e crianças
se levantavam pro mem sahib passar.
Quando um velho de turbante chegou no
Seu quarto com biscoitos e chá, o jovem
enrubrou-se, desnorteado pela servitude
de outro ser humano.

Fascinação com o ovo (II)



Um ovo,
simplesmente é.

De si:
auto-criação.

Sossegado, aguardando. O quê?
Sei lá. Ué.

Eu nasci
anti-ovo, puro irrequieto

Movimento.

sexta-feira, 2 de fevereiro de 2007

sem título


Na sala de jantar
geleiras se desprendem da calota,
se lançam ao mar.
Coisas grandes suspiram e desistem,
rangem e racham, desmoronam.
Montanhas—
Abismos—
Paredes—
O chão.

As línguas de gelo
deitadas entre meus dedos.
O deserto entre meus seios— meu mar de Aral.
Uma fragata de pesqueiros atolada na areia.
O rei mandou cavar
um canal até a costa
mas esse mar se encolheu
até ficar só uma poça
no meio do deserto.
E não deu tempo.

Porquê você pensou que tudo iria quieto?
O mundo não funciona assim.
O gelo estala de raiva
como o mais estridente incêndio.
A areia enterra tudo
com um susurro escaldante.
O oceano engole as coisas
sempre burbulhante.
E a tudo isso prosseguem: silêncios sufocantes.

As coisas mal-cuidadas
mergulham nágua ou evaporam.
O rei mandou cavar um canal até a costa
mas não deu tempo.


quinta-feira, 1 de fevereiro de 2007

Vitrine



Você vem à minha casa—
Eu cozinho macarrão—
Você me retorce as vísceras—

Eu tenho a boca afiada, é
e os olhos moles, sou puro mel
e cal viva. Abre a boca e engole.

Cheiro a tua frieza pétrea—
Chega mais: você já viu de perto
um coração remendado—
um bule vermelho e roliço
estilhaçado e recomposto?

Superbonder é demais.
Vá pro inferno.
Eu tenho fome e vou jantar sozinha.