quinta-feira, 29 de março de 2007

Abrigo

para M. Makeba


A voz erguida
sustém
um bemol liso e aberto
alça
sobre cada cabeça um teto
afixa
em cada corpo uma varanda
e ainda
põe nome na casa:
País

e quando a nota cessa
ela pousa leve
mente
mas

resta a
dor-fantasma
dum país

(país-fantasma)



NY, março de 2007

quarta-feira, 28 de março de 2007

Alhures



Colaborações recentes:

aqui,

aqui e

aqui.


E: as traduções continuam: Hilda Hilst e Paulo Leminski.


A fazenda



Da fazenda restou o sítio,
O campo talhado rente à sede
Feito bainha de saia.

Do sítio sobrou a casa,
Os pés de café virados pra porta
Como filhos ansiosos.

E depois ficou só o quarto,
Quatro paredes caiadas
E uma janela sem postigo.

E esse tempo todo,
Enquanto a sua rija geografia
Se recolhia para dentro de si,

Algo nele se desdobrava
Leve e evaporante
Como um guião de renda,

E se espalhava errante
Por correntes que desconhecem
As coisas duras e limítrofes.


NY, março de 2007

segunda-feira, 26 de março de 2007

Das lides



Dizem do touro quando enfia as hastes
Pelo fato do toureiro:
Enganchou.
Dizem do toureiro quando mete a lâmina
Pelo couro do touro:
Deu o golpe de misericórdia.
E quando eu atravessar a sua gravata e o seu peito,
E quando você me perfurar a saia e o ventre,
Dirão o quê desta nossa festa?
Os eufemismos de madrepérola
Não nos bastam. Nesta corrida
Já não se gastam sequer
Bandarilhas, nem essa tal
Misericórdia.


NY, março de 2007

Quarto-de-dormir



Você acorda e morde logo um poema.
Sacode a cabeça feito um cão,
Testando a resiliência.
As pontas se esfarelam
Porém a estrutura resiste.

Eu saio da cama dando cambalhotas
Pela alcatifa de palavras.
As que eu esmago com as costas
Estilhaçam em sílabas.
Outras engancham no meu cabelo
E umas letras nos cílios.

De noite vai dar um trabalho daqueles
Varrer este quarto.
E depois ninguém terá
Nada mais a dizer.


NY, março de 2007

domingo, 25 de março de 2007

Glossário de ofícios fundamentais



Um banqueiro é um minúsculo nódulo
Pra captação de capitais.
As moedas derramam
Das douradas artérias.


Um poeta é um diminuto triturador
Das causas sentimentais.
As palavras fogem da boca,
Cometas ascendentes.


Um bailarino é um miúdo regente
De moléculas banais.
No corpo, borbulha um pressentimento:
Altas mutações.


Um faxineiro é um pequeno restruturador
De poeiras astrais.
Redescobrimento: o si como nexo
De infinitas estrelas.


Um filósofo é um desacelerador-mirim
De pensamentos fatais.
Estes freios desgastados
Vão me liberar.



Sobrevoando Goiás, março de 2007

sexta-feira, 23 de março de 2007

Memento



Mas aqueles eram outros tempos.
A gente vestia outras roupas, usava
Outros nomes ainda. O sol era de ouro,
A vida, de gelatina.

Hoje o mundo tem algo triste na barriga.
Em mar de moça prenhe, um
Inchaço de lombriga.

Olha a vida hoje,
Atolada no presente feito um fusca no barro.
E o futuro, com sua pátina cisplatina
Aparece no peitoril:

Uma lasca de rubi
Sob o freio da língua.


Rio de Janeiro, março de 2007

quinta-feira, 22 de março de 2007

A mesa



Entre duas conversas desencontradas
Ele dobra o guardanapo sobre a mesa,
Declara:
Sou um deserto de emoções.
Ninguém ouve. As conversas desencontradas
Prosseguem. Risos e vinhos se sobrepondo,
Uma noite indiscutívelmente engraçada.

Ele encaixa a voz no espaço entre as palavras
(Que só ele entende ser silêncio),
Se diz que está vazio.
Como se devesse sentir-se pleno,
Recheado feito um profiterole,
Cheio como a lua cheia,
A pança redonda do vizinho sebento.

Alguém pausa, reparando na sua
Ausência presente, na sua
Presência ausente.

Ela pausa no meio da risada,
Encaixa a mente no vazio
Que precede os diálogos:
Sou uma ilha de emoções.
Tudo o que tenho
Mal cabe dentro de mim, e ao meu redor,
Há só o vasto e arisco mar.

Lacrado sob vácuo,
Ele não percebe. Aos poucos
Ele vai evaporar na areia.
Aos poucos
Ela vai se afogar na água.

As taças já secas e enfileiradas na estantes,
As gargantas já lavadas do riso,
Daquela conversa jamais-tida
Sobra apenas
Uma pequenina vertigem,
Coisa pra poema.


Rio de janeiro, março de 2007

quarta-feira, 21 de março de 2007

Sermão



Eu, que me deleitava com migalhas,
Hoje cobiço a padaria.


Rio de Janeiro, março de 2007

segunda-feira, 19 de março de 2007

Você era



Frágil demais
Para este reino.
Flor-de-ipê.

Pele de pergaminho
Num mundo de dermes
Feito escudos de pinha,
Couros escamados,
Bicos de rapina.

Açucarada onde corre ácida
Uma seiva antiga
E fatigada.

Então, sei que
Você não nasceu
Pra durar.

Até os jornais te machucavam.
A gente recortava as manchetes mas
Você vislumbrava os vazios
E deduzia tudo.
Ou: adivinhava tudo.
Ou: extrapolava tudo.

E logo te brotavam
Os hematomas
Nos flancos da alma. E
Todos os curativos
Se esfacelavam.
E de cada ferida
Despontava uma arara triste.

E ninguém -- nem eu
Nem meus reis nem meus vizires
Nem meus magos nem meus faquires--
Ninguém
Soube te segurar.


Rio de Janeiro, março de 2007

sábado, 17 de março de 2007

Poema primeiro de guerra



Soldado de papel
Atravessando o detector de metais
Você vem ou vai pra sua guerra
E ela é ou não de papel?

Soldado
Ponha as suas botas em pé na bandeja de plástico
Soldado
Ponha a bandeja na esteira e vira pra mim
Escuta só

Ontem eu sonhei com as suas botas
E com os seus comandantes de papel
Eles me despachavam pra sua guerra
Pra dançar nos seus campos minados
Um balé muito mortífero e cômico demais
Eles foram generais generosos
Me puseram até um caixão de origami
No bolso da farda (Just in case)
E nas botas cadarços fortes como tripas

Mas soldado
Quando quando a guerra veio até mim

Ela já não era de papel

Ela furou a minha nuca

Onde eu ainda tinha

Penugem-de-nenê

Com bala de aço.

Soldado de cartulina com o seu
Fusil de cartulina
Pra quem ou por quem
Você se oferecerá
E com que desconto, parcelamento, com que
Ticket-refeição?


terça-feira, 13 de março de 2007

Umami



Um emaranhado de enguias miúdas.
A Yoko ri com os dentes:
A delicacy!
Uma melena marinha, medusa
De um quinto sabor,
Dedilhando a minha boca
Entre punhados reconfortantes de arroz.

E a vida, esse aperitivo
Que eu sempre acreditei oscilar
Entre doce, salgado, azedo, amargo,
Ela então sorri de si mesma e (feito eu)
Ganha um novo nome.


domingo, 11 de março de 2007

Eu me propago através do espaço



Que manhã possante, polissilábica.
O fulano do mês está me achando:
Extra-viva.
Radiante. Radioativa!
Desprendendo saraivadas de íons.
A derme estalando, armando no céu
Vastos campos magnéticos, tantalizantes
Espetáculos boreais. Altas
Abóbadas abóboras.
Puro plutônio em calda. Menina-bomba,
Cabeça-de-cogumelo,
Moça-sobremesa! Vai um naco aí?
Ah-- muito cuidado.
De onde tiro tanto explosivo
Combustível?
Bonequinha vampírica,
Títere de mil anelos, eu
Hei de vazar as vossas veias.


quarta-feira, 7 de março de 2007

Roleta de vidro



Se você disser pra pular,
Eu pulo.
Nós fomos sempre assim,
Os dedos dos pés agarrando a quina da tábua.
Prontos pra rasgar a membrana d'água.
Profundezas soturnas ondulando sob o píer, ou talvez:
Pedregulhos afiados querendo nuca, prometendo
Altas paralisias.
Eu ouço ainda os teus desafios incautos,
Aquele teu faiscante meio-desejo
De nos matar.
O meu tórax incandescente
Latejando, impregnado,
Meio-querendo não te amar.
Arriscando tanto por tão pouco.
Ainda hoje somos assim.
Esta líquida geografia, quanta
Fútil precaução.
Mesmo desde aí,
Se você disser pra pular,
Pior que eu ainda pulo.

No fundo e no final de cada dia
Eu quero apenas
Me enroscar na serpente
Martelar um pífio verso.


domingo, 4 de março de 2007

Cigarra



Ninfa sedenta de seiva
Atarracada e robusta
Nascendo - parindo - expirando -
Entre mil irmãs sincronizadas.
Muda feito a morte,
Atenta ouvinte de violinos equidistantes.
Delicadamente articulada.
Algum dia você renascerá
Noutra pele.
Desvencilhada desta tua
Triste carapaça.
Uma fugidia fênix,
Teu penhoar de papel
Pendurado no tronco hospedeiro,
Tênue-trêmulo ao relento:
Souvenir de quem você terá sido.
Pois chega um momento
Em que se diz e se repete:
Fodam-se os caçadores noturnos.
De guerreira você se fará
Leitosa sentinela da noite,
Uma desempecilhada flor,
Orquídea honesta,
A cara aberta e redonda como a lua.


quinta-feira, 1 de março de 2007

Distúrbio



No miolo da noite
A possibilidade do amor te desperta.
Papoulas estridentes
Perfurando o breu, deturpando
A tua bem-cuidada
Louçania.